Os caminhos da CUFA
Celso Athayde fala sobre a Favela Holding, focada nas comunidades
Celso Athayde recebeu a reportagem do propmark para esta entrevista na sede da Cufa (Central Única das Favelas), embaixo do viaduto de Madureira – mesmo local onde ele, seu irmão e sua mãe moraram cinco anos, na infância. Athayde nasceu em Nilópolis, na Baixada Fluminense, e cresceu na favela do Sapo, em Senador Câmara. Viveu parte da infância nas ruas, não foi à escola e seu maior plano era sobreviver até o dia seguinte. Foi camelô, promoveu “bailes charme” e chegou ao mundo do hip hop nas favelas, que acabou levando-o à posição de empreendedor social. Ele construiu a primeira holding social de empresas: a Favela Holding, com 21 empresas focadas no fortalecimento, na geração de riqueza, formação e qualificação de pessoas de favelas. Recentemente, deixou a presidência da Cufa para dedicar-se mais à holding.
Qual é o tamanho das favelas no Brasil?
Os números são maiores do que o IBGE afere e denomina aglomerados subnormais: um total de 14 milhões de pessoas. Mas o IBGE não entende que Cidade de Deus e Rocinha estejam dentro desses números – e é óbvio que estão. No Brasil, essas pessoas geram R$ 65 bilhões por ano – é a economia da Bolívia e do Paraguai somadas. Só no Rio de Janeiro são 1.226 favelas, das quais 40 pacificadas. Para mim, os moradores de favelas hoje são 100 milhões de pessoas no Brasil. Favelas, para mim, são espaços físicos onde as pessoas vivem em extrema desvantagem social. E elas só fazem crescer.
Como nasceu a Central Única das Favelas?
A Cufa nasceu há 17 anos. Muitas organizações sociais surgem a partir de um plano, o sonho de alguém, de um grupo, de uma fundação. Eu nunca imaginei nada para a Cufa, nunca parei para fazer planejamento, nunca soube fazer isso. Ela nasceu em Madureira, do caos. Surgiu de um monte de pretinhos da favela, inicialmente unidos pelo movimento hip hop – no qual eu estava envolvido –, que queriam fazer uma revolução e transformar o mundo, embora nunca tivessem lido livros sobre o assunto. Começou com um grupo de cerca de 200 pessoas, que se reunia aos sábados, das 9h às 17h, sem nenhuma meta em especial. O que nascia ali era a consolidação da ideia de que queríamos algum tipo de identidade. Certa vez um cara da Light foi lá falar sobre energia nuclear, eu não estava entendendo nada, até que alguém perguntou algo interessante, ele respondeu, uma menina perguntou outra coisa com base na resposta. Percebi naquele momento que as favelas tinham conteúdo, mas não tinham como dar vazão a ele. Não havia espaço para quem tivesse uma quantidade maior de informação. Percebi que precisávamos ampliar as nossas relações.
E quando a Cufa se organizou, de fato?
Queríamos fazer nossa revolução e começamos com reuniões semanais, com pessoas do asfalto. A revolução social só ocorre na medida em que o impacto da diferença se torna protagonista. Do contrário, haverá os bem-sucedidos ajudando enquanto podem ou querem. E quando não puderem ou não quiserem mais, continua o processo de desconstrução e desgraça de sempre. Um dia o Cacá Diegues foi falar para nosso grupo sobre Cinema Novo. Ali se revelou que o cinema tem montagem, criação de trilha sonora, captação de leis de incentivo, uma série de atividades que ninguém conhecia. Ali iniciamos as atividades na área audiovisual e nasceu, inclusive, o filme “Falcão - Meninos do Tráfico”. Criamos um curso coordenado pelo Cacá na Cidade de Deus, em parceria com a ECO, da UFRJ, que existe até hoje. No primeiro ano formamos 300 mil pessoas em todo o país. No ano retrasado ganhamos um prêmio de educação, o Darcy Ribeiro, oferecido pela Câmara dos Deputados de Brasília.
Assim nasceu a missão para a Cufa?
Nunca pensei que pudessemos fazer isso ou aquilo, sequer me preocupei com isso. Fomos fazendo do nosso jeito. Um dia conseguimos um recurso com o Ronaldinho Fenômeno e o Zidane, numa partida de futebol na Suíça em que uma parte da renda ia para a Argélia e a outra vinha para o Brasil. Quando os recursos nos foram concedidos, criamos uma sede na Cidade de Deus e decidi ir para São Paulo falar com Paulo Skaf (então presidente da Fiesp) para conseguir computadores. Conseguimos, depois providenciamos programas, mandamos buscar os computadores. Ali descobri que o homem do asfalto não nos odiava como eu imaginava. O que não existia era uma interface entre a favela e o asfalto. Como interagir quando se acha que os homens do asfalto – os playboys, os poderosos, os empresários – são do mal e nós somos as vítimas da sociedade?
E como conciliar as diferenças?
Existem diferenças de pensamento, de ideologia, de posição social, racial – na medida em que 87,4% das pessoas da favela são pretas –, mas elas não podiam impedir o avanço de quem quer que seja. O homem branco representa o poder; o homem preto, a miséria. Isso está posto. Concordem ou não. Quando o homem foi à Lua, foi à Lua. Se um negro foi à Lua, foi o “primeiro negro” a ir à Lua, porque o homem já tinha ido. Se isso é um assunto, é porque é assim. A Cufa nasceu a partir disso, sem saber exatamente o que queria e para onde ia, mas disposta a fazer reflexões como estas que estamos fazendo aqui, agora. O que me irritava naquela época é que a imprensa achava que os artistas de rap, como MV Bill, eram gênios apenas porque conseguiam proferir uma frase. Ainda que o que dissessem não fosse genial. A expectativa era tão baixa em relação ao que a gente pode formular, que qualquer coisa pode ser um gesto que surpreende. Precisávamos impactar mais, de múltiplas formas. Começamos a construir cursos e pontes de relacionamento com o asfalto – sem nunca planejar. O que tivemos foi a capacidade de imaginar a possibilidade de crescer, de mudar a vida das pessoas e equilibrar a sociedade a partir de oportunidades. Sempre se fala muito em meritocracia, mas não se pode avaliar ou considerar a meritocracia se as pessoas não têm as mesmas oportunidades. A Cufa passou a ser isso. Aí ganhamos parcerias, conhecemos mais pessoas, geramos mais impacto. E hoje estamos em 412 cidades, nos 27 Estados e em 19 países.
Como se dá a presença internacional da Cufa?
Exatamente como no Brasil. Em favelas, em comunidades pobres. Há favelas em outros lugares, com configurações diferentes das do Brasil, onde a favela é, em geral, um território dominado. No Harlem, nos Estado Unidos, onde fica uma Cufa, os moradores recebem comida da prefeitura. A configuração pode ser diferente, mas as pessoas vivem em extrema desvantagem social. O que estamos lançando agora são dois escritórios globais políticos da Cufa – um em Londres e outro em Nova York – que funcionarão a partir de 17 de setembro. A Cufa passa a ser integrante da ONU a partir dessa data, interagindo com todos os países-membros da organização a partir da missão brasileira. Os temas tratados serão juventude, afrodescendência e habitação. Em favelas, naturalmente.
E como nasceu a holding?
A holding foi uma maneira de manter a revolução social, por vias econômicas. Não queríamos só ficar formando gente para o mercado de trabalho. Queríamos falar de dinheiro. Vivemos num país capitalista em que o pobre e o preto têm um pouco de resistência em falar disso, como se fosse crime, porque fomos educados dessa maneira. Montamos um grupo de pessoas no Rio, a liga dos empreendedores comunitários, de 300 favelas. São pessoas que têm lideranças nesses lugares, não são necessariamente empreendedores clássicos, mas conseguem interagir com os mais variados segmentos das favelas, transitam livremente, não têm “lados”. Qualificamos essas pessoas com a Fundação Don Cabral e o Sebrae e eles passaram a fazer parte da Cufa – para poder falar de negócios. A holding social tem como objetivo gerar riqueza na favela, formar empreendedores de fato e aumentar as possibilidades de empregabilidade naqueles territórios. Todos os seus recursos são revertidos para a Cufa, o que é muito importante. Saí da Cufa, mas me mantenho presidente do Conselho. Passamos a construir, com empresas parceiras, possibilidades de negócios com eles, seja criando uma raspadinha, um produto da Plasvale ou montando uma agência de publicidade. A condição é que os moradores façam a gestão desses negócios.
Quais áreas vocês decidiram cobrir?
Criamos uma empresa de pesquisa com o Renato Meireles, do Data Popular, chamada Data Favela. Uma empresa de live marketing (InFavela, com o Grupo PPG) para lidar com os números, ativar nesse território. Nenhuma empresa de marketing vai ativar no Chapadão (Morro do Chapadão, Zona Norte do Rio), no complexo da Pedreira, no complexo do Camará. Só que estamos falando de 100 mil pessoas nesses lugares. Que consomem de batom a motocicletas da Honda. Como ativar? É preciso uma empresa que una o know-how em marketing ao know-how desses territórios. Também criamos uma empresa de shopping centers, a Favela Shopping. Trabalham na empresa 100% de moradores das favelas e trabalharão nas franquias dos shoppings 80% de moradores de favelas. Haverá motoboys e faxineiros da favela – como nos shoppings do asfalto –, mas os donos e gerentes das lojas serão moradores das favelas. Essa é a diferença. Outras empresas são a Avante (soluções financeiras), a Confusão Filmes (com a Conspiração), a Favela Distribuições (com a P&G, para alavancar distribuição de produtos), a Favela Objetiva (produção editorial), a GiPlanet (capacitação profissional em entretenimento), a Cadeia Produtiva (fábricas de móveis, em parceria com a italiana Doimo) e a Favela Esporte (voltada para assessoria e desenvolvimento de atletas).
Como anda o projeto Taça das Favelas?
É um dos nossos muitos projetos (criado em 2012), no qual trabalhamos com cerca de 500 mil jovens de sete Estados numa competição de futebol de equipes compostas por moradores de favelas (apoiada por empresas como Gillette, Guaraná Antarctica, TIM, Nike, O Globo, Extra, SporTV, rádio Globo, Estácio, Light e Sebrae). Só do Rio são 96 mil jovens de favelas e 160 equipes. No ano que vem, faremos um convênio com as federações de indústrias dos Estados onde estamos para encaminhar esses jovens para o primeiro emprego ou cursos.
Como as marcas vêm transitando nas favelas?
As empresas, de um modo geral, têm departamentos de área social que são importantes, mas parecem existir muito mais para justificar um discurso que o mundo está usando do que necessariamente um compromisso que podemos admirar. Podemos até admirar o profissional contratado pela empresa. O discurso do profissional é uma coisa, mas a empresa ter o compromisso definido para o desenvolvimento de favelas, por exemplo, não vem acontecendo com a maioria delas. Nem lembro de alguma que faça dessa maneira. Quando faço um shopping numa favela, não estou pensando no social. Estou pensando no comercial. Porque o social está na essência da nossa instituição. Somos uma instituição de 90% de pretos e 100% de favelados. Tudo o que fizermos está impregnado de comportamento social – que é a mudança de paradigma, de oportunidade, de sentimento e de autoestima. Está implícito nas nossas ações. Numa empresa, o debate do que é ou não social é discutível. Não sei quais são as empresas verdadeiramente sociais envolvidas nos nossos projetos, mas posso apontar as que querem ganhar dinheiro na favela com algum grau de responsabilidade, na medida em que a Cufa ou a holding colocam a oportunidades para elas. Não queremos dinheiro ou caridade. Se você vende bebidas, e as pessoas têm livre arbítrio e podem beber, proponho que se crie uma cadeia em que parte desses recursos permaneça na favela. Não precisa fazer creche – nós fazemos. As empresas que entram nesses projetos não estão querendo resolver os problemas da favela, mas aproveitando a oportunidade de ganhar dinheiro. Antes, a favela só consumia. Hoje, ela faz parte do negócio. Nós geramos riqueza aqui dentro.
Agora vocês estão criando um índice para medir o comprometimento social das empresas?
A partir de 17 de setembro estou construindo um projeto com um grupo em que faremos ações com empresas – de governo ou privadas – que geram pontuações. Um índice afro da contribuição das empresas. As empresas vão se incorporar aos projetos e terão uma pontuação – que será pública. Ainda não tem nome. Se eu faço uma loteria esportiva, por exemplo, cada empresa destinará 1% de negócio a ela, com o objetivo claro de formar mais negros. É uma forma de aferir, a partir de números escuros, não claros, padrões de responsabilidade. Os recursos dirigidos aos projetos contribuirão para formar mais negros. Hoje, 82% da população de rua é formada de pretos. Não podemos dizer que somos todos iguais. Isso precisa ser combatido, mas todos têm medo de assumir isso. Nós não somos todos iguais. O branco tem vantagem em relação ao negro. Se fôssemos todos iguais não existiria cota para negros nas universidades, não existiria movimento negro. Os brancos ajudam os movimentos negros. O jovem negro é o que mais mata, o que mais morre. É preciso assumir isso. Há números que comprovam isso. Isso não fará das empresas que entrarem como socialmente corretas, mas parceiras de um projeto que tem relevância. É preciso haver clareza. Do contrário, fica o diretor de marketing querendo matar o diretor de responsabilidade social, porque ele vive “pedindo coisas”.
Fonte: Propmark
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